A crença de que a cura do alcoolismo era questão de vontade impediu avanços na área |
ÀS SETE da manhã, o homem encostou no balcão da padaria com as mãos trêmulas e a barba por fazer. O balconista serviu um copo americano com pinga até o friso superior. Ele se debruçou sobre a bebida e deu o primeiro gole sem usar as mãos. Pouco depois, tremendo menos, conseguiu segurar o copo e tomar o resto.
Em seguida, começou a transpirar, abriu o colarinho e fez uma série de inspirações profundas que não lhe trouxeram alívio. Ao contrário, o rosto ficou congesto, com as veias saltadas, vermelho como pimentão.
Vou morrer, disse para o balconista atônito que, em segundos, lhe preparou um copo de água com açúcar. Agitado, saiu para a calçada em busca de ar, com o rosto em chamas. Duas senhoras que compravam pão foram atrás. Insistiram que tomasse a água açucarada, enquanto o abanavam com um xale preto.
Lembro como se fosse ontem, dessa cena que presenciei aos 14 anos.
No dia seguinte, a vizinhança comentava que a esposa havia colocado na sopa do marido o remédio causador da sensação de morte iminente na padaria.
Durante muitos anos, o único recurso farmacológico para o alcoolismo foi essa droga traiçoeira: o dissulfiram, conhecido popularmente como Antabuse.
No mesmo período em que a medicina desenvolveu antibióticos, medicamentos para controlar hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares e tantas outras, a crença ridícula de que a cura do alcoolismo era simples questão de força de vontade impediu qualquer avanço nessa área.
Tanto é verdade que os Alcoólicos Anônimos representavam a única esperança para os que desejavam livrar-se do álcool. Situação humilhante para os médicos: um grupo de auto-ajuda conseguir fazer muito mais do que a medicina inteira.
Tal panorama começou a mudar apenas nos anos 90, quando estudos clínicos e inquéritos epidemiológicos permitiram dividir os dependentes em dois grupos principais.
O primeiro é representado pelos que experimentam grande excitação ao beber. São aqueles que nas festas estudantis riem, fazem algazarra e se apropriam da palavra. O álcool os torna eufóricos, seguros de si. Costumam apresentar problemas causados pelo uso excessivo já aos 20 ou 30 anos. Em suas famílias geralmente há outros casos de alcoolismo.
No segundo, estão incluídos os ansiosos que bebem com a finalidade de aliviar o estresse e a ansiedade. Geralmente, começam a beber com moderação a partir dos 30 ou 40 anos e só apresentarão as complicações características do uso excessivo mais tardiamente.
Como resultado de intenso trabalho com animais de laboratório, em 1994 foi aprovado o segundo medicamento para o tratamento do alcoolismo: a naltrexona, droga que bloqueia no cérebro os receptores opióides existentes nos neurônios responsáveis pelos efeitos euforizantes do álcool.
A terceira droga aprovada, o acamprosato, bloqueia a liberação de um neurotransmissor (glutamato), produzido em quantidades excessivas pela exposição continuada a doses altas de álcool. Embora reduza a intensidade dos sintomas da crise de abstinência, os resultados do acamprosato têm sido contraditórios.
Nos últimos anos, a compreensão dos mecanismos moleculares que levam à liberação dos neurotransmissores envolvidos nas sensações de prazer, euforia, agressividade e dependência química associadas ao álcool, possibilitou a descoberta de novos tratamentos.
Em estudo publicado em 2003, na revista "The Lancet", o topiramato, usado em casos de epilepsia, enxaqueca e distúrbios alimentares, demonstrou ser capaz de reduzir o número de drinques diários e de aumentar os dias de abstinência.
No ano passado, foi demonstrado que a vareniclina, droga de aprovação recente para os que decidem livrar-se do cigarro, reduz a sofreguidão por bebidas alcoólicas em ratos tornados dependentes. É provável que tenha efeito semelhante em seres humanos.
Ao lado dessas drogas que usam como alvo os neurotransmissores, têm ocorrido avanços significativos no estudo de outras que interferem com o mecanismo de estresse, responsável pelo abuso nos mais ansiosos.
É provável que nos próximos cinco a dez anos possamos oferecer aos que fazem uso nocivo do álcool, remédios eficazes que os ajudem a livrar-se da dependência. Talvez até surjam medicamentos que lhes realize o sonho de experimentar o prazer de um copo de vinho ou de um chope com os amigos, sem correr o risco de beber até cair na sarjeta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário