sábado, 10 de maio de 2008

A moça do avião



As companhias aéreas fizeram um complô para escolher meus companheiros de vôo

JÁ VI gente para ter azar com parceiro de assento em avião, mas, como este que vos escreve, duvido.

Não que eu seja enjoado, exigente, daqueles que esperam viver experiências transcendentais com o ocupante da poltrona vizinha. Dos que sonham conhecer um futuro sócio para ganhar fortunas, um filósofo que lhes desvende o significado da existência, uma mulher fatal. Longe disso, fico feliz com pouco: basta que me deixem ler, escrever um texto, olhar as nuvens.

Se, por acaso, sinto antipatia gratuita por alguém na sala de embarque, tenho certeza absoluta de que sentará a meu lado.

Agora, quando encontro uma senhora simpática, um senhor de boas maneiras, uma mulher com perfume delicado ou um amigo que não vejo há tempo, nem me entusiasmo: ficarei na frente, eles no fundo da aeronave, ou vice-versa.

Tenho a impressão de que as companhias aéreas organizaram um complô para escolher a dedo meus companheiros de vôo: tagarelas curiosos por minha vida íntima, espaçosos que se apoderam do braço da cadeira a cotoveladas, brutamontes que dormem e despencam para o meu lado, mal encarados que não pedem desculpas quando esbarram, neuróticos que maltratam as comissárias de bordo, e, principalmente, crianças irrequietas.

Já viajei para Tóquio de classe econômica com o berreiro de um bebê na fileira da frente. Não que o marginalzinho nipônico gritasse sem parar, deixava para fazê-lo no exato instante em que eu pegava no sono. Fui para Los Angeles ao lado de um bêbado que derrubou um copo de vinho tinto no meu colo; para Manaus, prensado entre duas americanas opulentas que transbordavam sobre mim; e, para não lembro onde, ouvindo um gaúcho descrever uma sucessão interminável de desastres aéreos.

Outro dia, na fila do embarque, vi uma mulher de rosto esculpido a cinzel, lábios grossos, rutilantes, cabelo crespo puxado para trás. Parecia uma divindade africana perdida no vôo de Chicago para Miami.

Lógico que não sentou perto; passou por mim altaneira em direção às últimas fileiras do avião.
Abri um livro com os contos de Tchecov, o escritor que eu gostaria de ser.

Pediram para desligar os celulares e fecharam as portas. Então, senti a mão da divindade em meu ombro:
- Posso sentar a seu lado. Morro de medo. Na primeira fila, sinto mais coragem.

Assim que o avião decolou, ela se achegou com doçura:
- Você parece com meu pai.

Tirou uma fotografia da bolsa. Era um senhor negro de olhar alegre numa festa de aniversário, alto, de aparência cuidada, do tipo que as mulheres elogiam. Vestia uma camisa de manga comprida igual a que eu usava. Gostei da comparação.

Com intimidade descabida, ela descreveu a infância em Chicago, o curso na Universidade de Michigan, o encontro com o futuro marido na estação de trem, a paixão por ele, o nascimento da filha, a decepção ao descobrir que ele tinha outra, o amante que ela arranjou para se vingar, o retorno à casa dos pais.

Perguntou se minhas filhas conseguiam sentir-se adultas perto de mim. Ela, ao contrário, virava criança na presença do pai, razão pela qual havia fugido naquela tarde sem deixar pista. Precisava de tempo para refletir, alguns dias de solidão na praia trariam a paz que buscava.

Tomou dois copos de vinho, escreveu um bilhete no guardanapo, pediu que eu olhasse dentro de seus olhos e perguntou se poderia confiar em mim. Queria que eu desse um telefonema de Miami para ler o recado contido no bilhete: "Papai querido, eu te amo, mas preciso crescer, já tenho 38 anos e uma filha de 16. Não fugi, saí de perto".

Despedimo-nos na porta do avião. No portão de embarque para São Paulo, cumpri o prometido. Atendeu a mãe, o pai havia saído à procura da filha. Em meu melhor inglês, relatei o encontro casual e o pedido para ler sua mensagem.

A senhora achou tudo estranho.

Procurei ser convincente, insisti que era médico, brasileiro, de volta para casa depois de um congresso, e que minha participação involuntária naquele drama familiar estava limitada ao favor que acabara de prestar a uma desconhecida. Perda de tempo, não consegui convencê-la.

Depois de várias perguntas que eu não soube responder, acusou-me de lhe haver seduzido e raptado a filha. Quando ameaçou mandar a polícia atrás de mim, desliguei o telefone.

Tanta gente naquele avião, aquela mulher tinha que sentar justamente a meu lado?

Um comentário:

nelminha disse...

Dr. Drauzio, numa revista mensal de Jan/09, li um comentario sobre seus texto "A Moça do Avião", procurei na internet, li e gostei demais. Eu gosto muito de ler, mas nem sempre o viajante ao lado entende isso e insiste em entabular conversa que não estou interessada, pois o livro (a revista)permanece aberto enquanto ele(a)fala, entendo, mão não participo. Abraços de sua fã.